Desafios do Trabalho na Atenção Primária à Saúde
na Perspectiva das(os) Trabalhadoras(es)

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Trabalho informal

Filippina Chinelli

Historiadora. Doutora em Educação e Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal Fluminense. Professora-pesquisadora do Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz (Lateps/EPSJV/Fiocruz).Historiadora. Doutora em Educação e Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal Fluminense. Professora-pesquisadora do Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz (Lateps/EPSJV/Fiocruz).

O trabalho informal é um fenômeno que ocorre praticamente em todas as sociedades capitalistas, em todos os tempos, mas assume grandes proporções nos países mais pobres, como o Brasil. Todos os dias vemos, principalmente nas ruas das grandes cidades brasileiras, pessoas de várias etnias, cores, gênero e idades, oferecendo toda a sorte de produtos, desde brinquedos, doces, balas, refeições, roupas, até pequenos aparelhos eletrônicos, entre muitos outros. A toda hora precisamos de bombeiros, eletricistas, pedreiros cuidadores, faxineiras e de muitos outros prestadores de serviços que conseguimos localizar quase sempre através de nossas redes de relações pessoais, inclusive as redes virtuais, ou por anúncios em jornais e revistas. Também não são poucas as vezes em que encontramos em nossa vizinhança pequenos estabelecimentos sem alvará de funcionamento que comercializam serviços e produtos variados como alimentos, bebidas, roupas usadas, entre outros. Todas essas pessoas trabalham sem qualquer proteção legal, porque não possuem carteira de trabalho assinada, documento criado em 1932 com a denominação de carteira profissional. Por isso, essas pessoas são conhecidas como trabalhadores “sem carteira” ou trabalhadores informais.

Em nosso país, desde a propagação do trabalho livre no final do século XIX, o mercado de trabalho nunca incluiu toda a força de trabalho disponível, sobretudo aquela oriunda da população preta e feminina, configurando-a uma parcela da classe trabalhadora praticamente destituída de direitos. À época, os trabalhadores eram principalmente rurais, visto que a economia brasileira se baseava na produção agrícola, mas podiam ser encontrados, em cidades como o Rio de Janeiro, caixeiros viajantes, vendedores, entre outros, boa parte dos quais escravizados, alforriados que ofereciam os mais diversos produtos, como frutas, legumes, animais, vestiário, comida etc., retratados por vários artistas plásticos do período, cujas imagens até hoje são reproduzidas, inclusive, em livros didáticos.

Mesmo com o início da expansão das indústrias no país a partir dos anos 1930/1940, o mercado de trabalho continuou muito pouco regulamentado e excludente. Esses foram anos de luta da classe trabalhadora em formação, sobretudo industrial, pela conquista de direitos. Em 1943, toda a legislação trabalhista que existia no país foi reunida na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (Brasil, 1979). A carteira de trabalho passou a garantir e simbolizar essas conquistas. Entretanto, apenas aqueles que tinham sua profissão formalmente definida pelo Estado e expressa na carteira de trabalho eram considerados cidadãos plenos de direitos (Santos, 1979), aí incluída a assistência médica, através dos Institutos de Aposentadoria e Pensão, fundados no primeiro Governo Vargas.

A expansão das indústrias impulsionou a urbanização do país e o avanço das migrações internas, que deslocaram muitos trabalhadores do campo para as grandes cidades em busca de melhores condições de trabalho e vida. O Brasil avançava em direção ao capitalismo industrial, embora grande parte do território ainda permanecesse essencialmente rural. Vivia-se à época o início da expansão do trabalho assalariado protegido, conforme estabelecia a CLT. Contudo, apenas parte dos trabalhadores disponíveis foi incorporada ao mercado de trabalho mediante uma relação assalariada regulada pelo direito do trabalho. Isso porque, para que processo de acumulação capitalista se desenvolva, não é necessário absorver toda a força de trabalho existente em uma sociedade, aí incluídos trabalhadores migrantes. Em outras palavras, não é preciso que todos tenham um emprego para que o capital continue a crescer e se reproduzir.

Na verdade, sempre fez parte da lógica do capital manter no desemprego, no subemprego, no exercício de atividades intermitentes etc. integrantes de um excedente de força de trabalho que ultrapassa as necessidades da produção e que pode ser acionado e explorado conforme as demandas da esfera produtiva e dos interesses dos empresários (Trindade, 2017). Restam a essas pessoas, vivendo em condições precárias, possibilidades limitadas para obterem seu próprio sustento e o da família, através do desempenho de atividades fora do assalariamento devidamente regulamentado. Esse contingente excluído dos empregos formais contribui também para desestimular reivindicações dos trabalhadores e possibilitar o rebaixamento dos salários em geral, fazendo com que se tornem mais precárias as condições de trabalho e emprego daqueles que permanecem empregados. 

Os “sem carteira” não contribuem para o INSS, impossibilitando sua aposentadoria, salvo no caso daqueles que, quase sempre com muita dificuldade, conseguem arcar por conta própria com a contribuição. Enfrentam cotidianamente longas jornadas de trabalho sob o sol, a chuva, o perigo do trânsito intenso nas ruas e avenidas, além da violência cotidiana e ações nada amigáveis dos fiscais do Estado que, com frequência, confiscam-lhes a mercadoria, fecham estabelecimentos, impõem multas, dificultando-lhes a possibilidade de obter alguma renda.

Esse é o espaço das relações informais de trabalho, do mercado informal, onde a regulamentação do trabalho é cada vez mais frágil ou até mesmo inexistente. Contudo, a informalidade não diz respeito apenas a questões de ordem econômica. Ela envolve relações e práticas sociais que vão desde o desejo do trabalhador de não ter mais patrão, o que poucas vezes se consegue alcançar, até o recurso a estratégias de sobrevivência que dependem, em maior ou menor grau, de redes de solidariedade que dão apoio nas dificuldades de toda ordem que esses trabalhadores enfrentam. Esse é o caso, por exemplo, de mulheres que “tomam conta das crianças” para que outras mulheres possam trabalhar.

Até os anos 1970, a informalidade foi interpretada como resultado do que, então, era tratado como subdesenvolvimento. Ou seja, considerava-se que, à medida em que o capitalismo se desenvolvesse nos países pobres, que estes se “modernizassem”, a informalidade seria gradativamente superada e o trabalho informal deixaria de existir, substituído pelo trabalho assalariado regulamentado (Silva; Chinelli, 2018). Contudo, em vez de desaparecer, a informalidade vem se reproduzindo sob novas formas de trabalho (Antunes, 2011). Se antes era vista como transitória, tornou-se permanente, o que demonstra que a informalidade é intrínseca ao capitalismo, inclusive nas sociedades ditas desenvolvidas, onde começou a crescer desde os anos 1980 (Druck; Oliveira, 2008). Desde então, os trabalhadores informais constituem uma realidade cada vez mais presente nos países centrais, deixando a informalidade de estar relacionada apenas à pobreza. Nesses países, o direito do trabalho também foi atingido, provocando a flexibilização das relações de trabalho e a expansão da terceirização, empurrando grande parte dos trabalhadores antes assalariados para inserções alternativas no mercado de trabalho, pouco reguladas ou sem qualquer regulamentação legal.

Para explicar a permanência atual do trabalho informal e a sua generalização, é preciso considerar as implicações da crise do capitalismo e de sua reestruturação, que se iniciou em meados dos anos 1970. A chamada reestruturação produtiva e as ideias neoliberais provocaram transformações econômicas, sociais e políticas que afetaram e afetam as sociedades contemporâneas como um todo, conforme as especificidades de cada país. À época, o capitalismo enfrentava a crise do modelo fordista de organização do trabalho, a redução da produtividade e a queda da taxa de lucro. Para superar a crise, o empresariado dos países ricos – EUA, Europa Ocidental e Japão – orientou seus investimentos de forma maciça para o desenvolvimento de novas tecnologias, sobretudo de informação e comunicação – as TICs – que permitiram flexibilizar a organização da produção e os métodos de gestão do trabalho. Estas tecnologias possibilitaram o aumento extraordinário da produtividade das empresas e diminuíram a necessidade de trabalho vivo, ou seja, da presença física dos trabalhadores. Isso reduziu de forma drástica os postos de trabalho, mesmo os mais qualificados, sob a justificativa da necessidade de tornar menos rígidos os contratos de trabalho. O resultado foi uma forte redução do emprego nesses países e naqueles mais pobres, como o Brasil, abrindo espaço para a terceirização das relações de trabalho, mesmo nos empregos juridicamente regulados. A isso se soma a sistemática alteração dos direitos do trabalho que visa claramente a intensificação da exploração dos trabalhadores, favorecendo os interesses dos empresários. O capitalismo contemporâneo desperdiça força de trabalho, o que acaba engrossando a legião de trabalhadores excluídos do mercado formal que são empurrados para velhas e novas formas de trabalho legalmente desprotegido. Assim, além de atividades informais tradicionais, aumenta em escala planetária o trabalho temporário, intermitente, em tempo parcial, subcontratado, plataformizado, sob a forma de pessoa jurídica (PJ), Microempreendedor Individual (MEI) etc. (Antunes; Filgueiras, 2022). Cabe assinalar, entretanto, que os trabalhadores circulam com frequência, às vezes ao mesmo tempo, entre atividades formais e informais. Mas, em vez de “modernas”, como muitos querem fazer crer, essas relações flexíveis de trabalho são com frequência extremamente precárias, e sua existência, ao menos em nosso país, ocorre muitas vezes com a boa vontade, explícita ou não, do poder judiciário. Importa destacar que conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua que em 2021, 40,1 % da população brasileira encontravam-se na informalidade. Esse percentual sofre uma discreta variação quando se compara homens e mulheres: para os homens o percentual é de 40, 4%, enquanto para as mulheres chega a 39, 6% (IBGE, 2021). Quando se considera a variação desses percentuais levando em conta a cor/raça, nota-se que, se para o conjunto da população brasileira, como se viu, o percentual é de 40,1%, quando se consideram homens e mulheres brancos, o índice é de 32,7%, enquanto no caso de homens e mulheres pardos e negros o percentual é de 46,3%. Dito de outra forma, a informalidade que por si só gera prejuízos sociais, atinge mais profundamente a população negra, que historicamente acumula a sobreposição de fatores que acentuam de forma dramática as desigualdades sociais.

Entre os informais inclui-se boa parte dos trabalhadores da área da saúde, onde tradicionalmente o trabalho vivo tem importância fundamental. Atualmente o uso das novas tecnologias vem aumentando de forma acelerada não só no diagnóstico, como em intervenções, procedimentos cirúrgicos, em consultas médicas e em novos modelos de atenção, como o Saúde da Família. Mas, à diferença de outros setores da economia, essas tecnologias implicam em novas contratações de pessoal, geralmente mediante relação de trabalho terceirizada e com direitos trabalhistas reduzidos, muitas vezes descumprindo o que estabelece a legislação específica. 

Note-se ainda que a maioria desses trabalhadores terceirizados da área da saúde, principalmente os de nível técnico, são os que mais sofreram o impacto da pandemia da Covid-19. Além do risco associado ao contato físico com os pacientes e à falta de material de proteção, esses trabalhadores essenciais no cuidado e suas famílias, assim como a grande maioria dos informais, não tiveram o isolamento social garantido, expondo-se ao contágio também nos meios de transporte coletivo, visto que a remuneração que recebem e o valor do vale transporte não são, muitas vezes, suficientes para arcar com modalidades mais seguras de locomoção. 

Além disso, novas atividades aparecem, a exemplo das doulas, cuidadores de idosos etc., somando-se aos técnicos e auxiliares de enfermagem, enfermeiros, fisioterapeutas e outros, muitas vezes, multiplicando o trabalho informal, tanto nos domicílios, quanto nas próprias unidades de saúde, expandindo sua carga horária de trabalho. 

Vivemos em um mundo em que a escassez generalizada de emprego, a ampliação exponencial da informalidade, a desconstrução do direito do trabalho, a retração salarial e a fragmentação atingem grande parte da classe trabalhadora, ao mesmo tempo em que se trabalha cada vez mais e se aprofunda a expansão da precarização em todas as dimensões da vida.

 

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Referências Bibliográficas: 

ANTUNES, Ricardo; FILGUEIRAS, Vitor. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Revista da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região, v. 2, n. 2, p. 59 - 82, 2022. Disponível em: <https://juslaboris-ml.tst.jus.br/bitstream /handle/20.500.12178/200691/2021_rev_trt22_esc_jud_v0002_n0002.pdf?sequence=1&isAllowed=y#page=61>. Acesso em 08/05/2023. 

ANTUNES, Ricardo. Os modos de ser da informalidade: rumo a uma nova era da precarização estrutural do trabalho? Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 107, p. 405-419, jul./set. 2011. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/sssoc/a/3JD9n46H3Dhn7BYbZ3wzC7t/?format=pdf&lang=pt>.Acesso em 03/03/022.

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CARDOSO, Adalberto; PERES, Thiago B. A “modernização das relações de trabalho”, a informalidade e a pandemia. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/sssoc/a/3JD9n46H3Dhn7BYbZ3wzC7t/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em 10/03/2023

DRUCK Graça; OLIVEIRA, Luiz Paulo. A condição “provisória permanente” dos trabalhadores informais. VeraCidade, Revista da Secretaria Municipal de Planejamento, Urbanismo e Meio Ambiente, ano 3, n. 3, maio 2008. Disponível em: <http://www.veracidade.salvador.ba.gov.br/v3/ images/veracidade/pdf/artigo1.pdf>. Acesso em 21/01/2023.

SILVA; Luiz Antonio M; CHINELLI; Filippina. Velhas e novas questões sobre a informalização do trabalho no Brasil atual. In: CAVALCANTI, Mariana; MOTTA, Eugenia; ARAÚJO, Marcella. (orgs.). O mundo popular: trabalho e condições de vida entre as camadas populares. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2018.

SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979.

TRINDADE, Hiago. Crise do capital, exército industrial de reserva e precariado no Brasil contemporâneo. Serviço Social & Sociedade., São Paulo, n. 129, p. 225-244, maio/ago. 2017. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/sssoc/a/3TSwtXZPh6frCZF7QBNTLbP/?lang=pthttps://www.scielo.br/j/sssoc/a/3TSwtXZPh6frCZF7QBNTLbP/?lang=pt&format=pdf>. Acesso em 12/10/2022.

 

Como citar:

CHINELLI; Filippina. Trabalho informal [Verbete]. In: Glossário da pesquisa Desafios do Trabalho na Atenção Primária à Saúde na Perspectiva dos Trabalhadores. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2023. Disponível em: _______________. Acesso em: _______________.