Trabalho e gênero: a precarização inscrita no feminino
Pedagoga. Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Professora-pesquisadora do Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Lateps/EPSJV/Fiocruz).
Quando questionamos uma mulher se ela trabalha, provavelmente, a pergunta será relacionada às atividades remuneradas que realiza, esquecendo-nos dos inúmeros trabalhos executados em casa, como: limpar, cozinhar, cuidar das crianças etc. Esse lapso de memória não ocorre por acaso. Tem a ver com as relações de gênero que se aprofundaram no capitalismo, no qual, com base nas diferenças biológicas, colocou-se em segundo plano a participação da mulher na sociedade, construindo papéis sociais para justificar essa posição. No que diz respeito ao trabalho, as atividades que envolvem a produção de bens ficaram relacionadas ao masculino, e a reprodução da vida, ao feminino. A reprodução social diz respeito não só aos aspectos biológicos, como também à capacidade de criar e manter os seres humanos trabalhando, como diz Marx, serve para reproduzir a força de trabalho. Nesse sentido, o trabalho doméstico não remunerado realizado pelas mulheres contribui de maneira importante para o capital ampliar a sua margem de lucro (Arruza; Bhattacharya; Fraser, 2019).
Isso significa que, além da divisão social do trabalho entre quem tem os meios de produção e quem vende a sua força de trabalho, estabeleceu-se uma divisão sexual do trabalho, na qual há uma separação entre trabalho de homem e trabalho de mulher e uma hierarquização – o trabalho de homem vale mais que o trabalho de mulher (Kergoat, 2009). Essas clivagens adquiriram diversas formas na história, sem alterar, substancialmente, o papel de subordinação das mulheres no âmbito doméstico e no mercado de trabalho.
Em meados do século XX, expressões como “rainha do lar”, “lugar de mulher é na cozinha”, fazendo referência ao papel das mulheres no espaço doméstico, eram significativas dos valores construídos com base no que se chamou de fordismo. Antônio Gramsci analisou, em seu famoso texto “Americanismo fordismo”, as relações entre a produção e a reprodução no trabalho. O pensador italiano destaca a preocupação de Ford em estudar a vida dos operários como forma de controle da mão-de-obra, uma vez que os trabalhadores, vistos como mais uma peça da indústria, não podiam ser desgastados com frequência sem ocasionar perdas. A proibição do alcoolismo, bem como a monogamia tinham por objetivo fazer com que o homem não desperdiçasse suas energias desordenadamente, uma vez que “o operário que vai para o trabalho depois de uma noite de orgias, não é um bom trabalhador” (Gramsci, 2007, p. 267). Nesse contexto, apesar das mulheres também estarem presentes no trabalho industrial e em outros setores da economia, enaltecia-se a sua presença no espaço privado, ficando responsáveis por organizar a vida familiar. Os trabalhos remunerados que realizavam eram entendidos como um “segundo salário”, “uma ajuda nas despesas” ou ainda “para os alfinetes.” O movimento feminista da década de 1960 foi um processo político importante para desnaturalizar essa visão, como denunciava, à época, a filósofa Simone de Beauvoir: “ninguém nasce mulher, torna-se”. Com essa frase, sublinhava que não era o corpo biológico que definia o ser mulher, mas sim os valores com os quais elas foram, culturalmente, formadas.
Depois da década de 1970, ocorre uma transformação na produção, conhecida como reestruturação produtiva, que levou à adoção do Toyotismo como forma principal de organização do trabalho. As mulheres foram, gradativamente, ganhando maior espaço no mercado. No entanto, diante da retração dos direitos sociais que vem ocorrendo sobretudo a partir dos anos de 1990, essa incorporação torna-se um exemplo da precarização ocorrida em âmbito geral. Ao invés de uma maior paridade dos direitos, assiste-se a sua retração nos diversos setores da sociedade.
As mulheres aumentaram sua participação no setor industrial, mas em trabalhos rotinizados e mais dependentes do fazer manual; houve a expansão do setor de serviços, aí incluída a área da saúde, com emprego da força de trabalho feminina, mas em ocupações desprestigiadas e de baixa remuneração; alcançaram maiores níveis educacionais, mas sem reconhecimento social e salarial. Acrescentamos que as políticas neoliberais acarretaram uma expressiva redução da rede de assistência social, havendo um fomento da participação da família no cuidado com seus membros, sobretudo da participação das mulheres, como forma de compensar a diminuição do Estado nas políticas sociais (DURÃO, 2018).
A pandemia como expressão da precarização das profissionais de saúde no Brasil
Em grande medida, o ofício das trabalhadoras em saúde foi construído como uma atividade vocacionada, apoiado na construção de identidades e papéis femininos, nas quais as tarefas ditas “naturais” das mulheres, estenderam-se para as profissões, caso das profissionais da enfermagem e das agentes comunitárias de saúde. Essa naturalização foi significativa de uma maior exploração do seu trabalho, relacionando-se com as hierarquias profissionais presentes nas equipes de saúde. Como destacam Lotta et al. (2020) com base no Censo de 2000, elas representam 70 % da força de trabalho em saúde, sendo, desses, 62% nas categorias de nível superior e 74% de nível médio e elementar.
A pandemia intensificou as desigualdades presentes na sociedade, lançando luz sobre questões que dizem respeito à classe, gênero e raça que se relacionam diretamente com a precarização do trabalho em saúde. De acordo com a pesquisa da federação sindical “Public Services International” (PSI), desenvolvida em cooperação com a ONU entre março de 2020 e dezembro de 2022, morreram no Brasil 4.500 profissionais de saúde das redes pública e privada, sendo que dois terços desses profissionais não tinham contratos formais de trabalho e oito em cada dez eram mulheres. (Public Services International, 2022)
Quando relacionamos os dados de óbito com a divisão sexual e racial do trabalho, a pesquisa reforça as desigualdades presentes na sociedade brasileira, uma vez que a Covid-19 afetou sobretudo as mulheres que recebiam menores salários, vale dizer, auxiliares e técnicas de enfermagem (70%), sendo que quase a metade (47%) eram pretas ou pardas (Public Services International, 2022). Como sublinham Reis et al. (2020) a maior exposição e contaminação pelo coronavírus das mulheres, não se explica apenas pela super-representação no setor, mas também pela segregação de gênero e raça, na medida em que são as mulheres negras que estão mais inseridas em trabalhos precários, com baixa remuneração e sem prestígio social. A impossibilidade do distanciamento social e a proximidade física com portadores de Covid-19, colocaram-nas em situação de maior vulnerabilidade.
Elas tiveram ainda que lidar com a reorganização do espaço doméstico, considerando a necessidade de redobrar a atenção às crianças e idosos, e com o aumento das tarefas de higienização para evitar a contaminação, entre outros. Somou-se a isso o medo de infectar os seus familiares. Vale sublinhar que as estratégias utilizadas para dar conta da intensificação do trabalho doméstico, também foram perpassadas pelas clivagens de classe, gênero e raça, na medida em que a possibilidade de manter o isolamento ou de contratar outras mulheres, foram limitadas pela própria precarização da vida na qual estão inseridas.
Durante os períodos de maior contágio do vírus, essas profissionais foram enaltecidas pela mídia como “super-heróis”, digo heroínas, reforçando a importância do seu trabalho na contenção da pandemia. Seja pelas necessidades objetivas de sobrevivência, seja pelas necessidades subjetivas, relativas ao dever ético em dar a sua contribuição, não se negaram aos desafios, mesmo sem os recursos mínimos para enfrentar a pandemia. Vistas sob a ótica da desigualdade de gênero, a precarização do trabalho contribuiu para o aumento de mortes no setor saúde, em especial das mulheres, reforçando a importância do reconhecimento dessas trabalhadoras não apenas no discurso, mas nas condições concretas de trabalho.
Fordismo
Relações raciais no trabalho
Trabalho em saúde
ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. Paris: La Découverte, 2019. Disponível em <https://mulherespaz.org.br/site/wp-content/uploads/2021/04/Feminismo-para-os-99-um-manif-Cinzia-Arruzza.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2023.
DURÃO, Anna Violeta. Relações de gênero na conformação de uma nova morfologia do trabalho: O fazer-se das Agentes Comunitárias de Saúde. Tese, 236f. (Doutorado em Educação) Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Vol. 4, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, Helena et al. (orgs.). Dicionários crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p.67-75.
LOTTA, Gabriela et al. A pandemia de Covid-19 e (os)as profissionais de saúde pública: uma perspectiva de gênero e raça sobre a linha de frente. Relatório de gênero, v. 4, 2020. Disponível em: <https://neburocracia.files.wordpress.com/2020/12/relatorio_genero_v4.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2022.
PUBLIC SERVICES INTERNATIONAL. PSI. Profissionais de saúde e a Covid-19 no Brasil. Relatório especial em dados e gráficos. Lagoon Data, 2022. Disponível em: <https://publicservices.international/resources/publications/profissionais-da-sade-e-a-covid-19-no-brasil---relatrio-especial-em-dados-e-grficos?id=13389&lang=pt>. Acesso em: 13 nov. 2023.
REIS, Ana Paula et al. Desigualdades de gênero e raça na pandemia de Covid-19: implicações para o controle no Brasil. Saúde em debate, v. 44, n. spe 4, 2020. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0103-11042020E423>. Acesso em: 30 abr. 2023.
Como citar: DURÃO, Anna D. Trabalho e gênero: a precarização inscrita no feminino [Verbete]. In: Glossário da pesquisa Desafios do Trabalho na Atenção Primária à Saúde na Perspectiva dos Trabalhadores. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2023. Disponível em:_____________. Acesso em:______________.