Desafios do Trabalho na Atenção Primária à Saúde
na Perspectiva das(os) Trabalhadoras(es)

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Empreendedorismo no Brasil

Filippina Chinelli

Historiadora. Doutora em Educação e Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal Fluminense. Professora-pesquisadora do Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz (Lateps/EPSJV/Fiocruz).

“Transforme seu sonho em realidade e crie seu futuro: seja empreendedor!”; “Pense fora da caixa, crie seu próprio negócio!”; “Arrisque-se, não dependa mais de patrão!” Diariamente somos bombardeados com frases como essas, transmitidas pelas diferentes mídias, por propagandas afixadas nas ruas, na porta de escolas, em todo lugar, inclusive por programas de televisão como o Pequenas Empresas, Grandes Negócios, no ar desde 1988, e o canal Empreender, fundado em julho de 2022. Além desses espaços, redes de televisão abertas ou não, de abrangência nacional e internacional, veiculam de forma reiterada numerosas séries sobre o tema. Tudo isso com o objetivo de convencer a todos, inclusive aos trabalhadores mais pobres, a criarem pequenos negócios como solução para o desemprego que assola o país, seduzindo-os com a perspectiva de sucesso, de uma vida melhor, livres dos patrões que exploram seu trabalho.

Esse fenômeno está longe de ser novidade. Nas primeiras décadas do século passado, o empreendedorismo já se tornara objeto de reflexão de autores que relacionam o desenvolvimento do capitalismo ao empreendedorismo. Schumpeter (1982), por exemplo, estabeleceu uma distinção entre o capitalista e o empreendedor. Considerava que o capitalista se adapta, assume os riscos e financia a inovação; o empreendedor inova orientado pelo desejo de conquistar, de sentir-se superior por ter a capacidade de lutar, de ser criativo, de fazer coisas novas. Portanto, a inovação consistiria em uma função especial que nem todos poderiam desempenhar. Segundo o autor, o empreendedor seria por excelência o sujeito que teria condições objetivas, subjetivas e culturais de inovar, de promover a mudança, tanto no âmbito da produção de bens e serviços, como na vida como um todo. 

Desde a crise do capitalismo de meados dos anos 1970 e a sua consequente reestruturação na organização e gestão do trabalho, apoiada nas tecnologias de comunicação e informação, no avanço da microeletrônica, na redução crescente do emprego assalariado protegido e no surgimento de atividades que escapam muitas vezes da regulamentação – a reestruturação produtiva –, o empreendedorismo cresce de forma acelerada. Podemos localizar sobretudo na década de 1980 o grande impulso ao empreendedorismo em escala mundial, no contexto da reestruturação produtiva, da flexibilização, do neoliberalismo, dos altos índices de desemprego, do crescimento do individualismo. Desde os anos 1990, o empreendedorismo está na ordem do dia no Brasil. Como se apresentam, então, no país profundamente marcado pela precarização do trabalho e da vida que vulnerabiliza a todos, principalmente a população mais pobre a prática e a ideologia empreendedoras? 

A literatura consultada (Colbari 2007; Pereira, Martins, 2023; entre outros) ressalta que, a partir daí, o empreendedorismo passou a ser considerado sobretudo como uma saída para a crise do emprego. Para tanto, caberia a cada trabalhador, às suas custas, montar seu próprio empreendimento e investir em si mesmo para se adequar às exigências de qualificação consideradas necessárias para o sucesso do negócio. A Confederação Nacional da Indústria (CNI), organização sindical patronal, por exemplo, considera que o empreendedorismo é uma atividade que contribui para o desenvolvimento individual e do país. Considera que “a veia empreendedora das pessoas que querem desenvolver projetos, abrir empresas, gerar renda para si e seus funcionários” (Portal da Indústria, 2023a) seria uma característica do povo brasileiro. O empreendedor seria “alguém que tem a capacidade e a vontade de conceber ideias, identificar lacunas no mercado, tomar a iniciativa de transformar essas ideias em ações e estar disposto a assumir riscos para alcançar o sucesso” (Portal da Indústria, 2023b). Para a instituição, o empreendedorismo, portanto, é muito importante para o aumento produtividade, para o desenvolvimento social e para a redução das desigualdades sociais no Brasil, destacando que o setor industrial necessitaria de trabalhadores qualificados com características empreendedoras como a criatividade, colaboração, motivação etc. (Portal da Indústria, 2023b). 

Esse discurso enfatiza comportamentos e valores que conduziram à inovação e se manifesta na exaltação do trabalho por conta própria, do sucesso empresarial, na valorização do trabalhador que consegue empreender a si próprio, inclusive dentro da empresa na qual é assalariado – o intraempreendedor. Trata-se de um discurso que reflete fortemente os interesses empresariais e é propagado por empresas, mídias, por instâncias de governo etc. Corresponde ao avanço em todo o mundo da adesão à agenda neoliberal e ao gerencialismo, que exaltam as supostas virtudes do setor privado em detrimento do público, pretendem a transformação de todos os sujeitos em empresas de si mesmos, educados pelas leis do mercado e atentos a qualquer oportunidade de lucro. A organização norte-americana Junior Achievement, há quatro décadas presente no Brasil, resume o que denomina de filosofia na seguinte frase “A Vida é um Caminho, não um Destino e Você é o Arquiteto do seu Caminho” (Rodrigues, 2023) sugerindo que as(os) jovens devem ser incentivadas(os) a traçar e perseguir seus objetivos, a serem inquietas(os), a criarem possibilidades de negócios, a desenvolverem o chamado “espírito empreendedor”. 

As ideias empreendedoras procuram incutir nos trabalhadores e trabalhadoras perspectiva do sucesso, de alcançar melhores condições de vida. A ideologia e a prática empreendedoras têm hoje um papel estratégico para as empresas e a hegemonia do capitalismo contemporâneo: inovar, ou seja, gerar, quase sempre com base no que já existe, novas ideias capazes de produzir melhores resultados para a empresa; convencer que vivemos em uma sociedade que proporciona a todos a possibilidade de ascensão social, bastando preparar-se para tanto, ter força de vontade e sonhar. Os trabalhadores são compelidos a se autoconstruírem como empreendedores, a criarem seu próprio posto de trabalho, investindo em pequenos empreendimentos que, em geral, têm curtíssima vida útil; a se engajarem nos formatos de trabalho conteporâneos, como o trabalho plataformizado, veiculado como sinônimo de trabalho independente, quando o que ocorre é superexploração do trabalhador. Ou seja, o empreendedorismo teria a potência de contribuir fortemente para a superação das desigualdades sociais quando, na verdade, promove apagamento do passado do trabalho, quebra a solidariedade de classe e transforma o trabalhador em ‘parceiro’, em ‘colaborador’ das empresas, passando a ser o único responsável pelo seu sucesso ou fracasso. 

O mundo contemporâneo apresenta altos índices de desemprego, de subemprego, de informalidade, de dilapidação dos direitos trabalhistas e sociais, em especial nos países periféricos como o Brasil, favorecendo a ideologia empreendedora, na tentativa de minimizar um quadro de forte precarização do trabalho e em todas as dimensões da vida humana. Como disse Bourdieu (1998, p. 120), “a precariedade está hoje por toda parte”. 

No Brasil dos anos 2000, é perceptível o forte incremento das práticas empreendedoras, ao mesmo tempo em que se verificam políticas de estímulo às micro e pequenas empresas, a exemplo da Lei complementar no 128/2008 que criou o MEI – Microempreendedor Individual –, regulamentou a criação e a legalização de pequenos empreendimentos, informais em boa parte das vezes...

O país ocupa hoje o terceiro posto entre os cinco países que mais empreendem no mundo, atrás apenas do Sudão e República Dominicana (Brasil, 2023b). Note-se, contudo, que a maioria dessas empresas constituem empreendimentos por necessidade, ou seja, pequenos negócios que tentam superar as dificuldades de inserção no mercado de trabalho. São frequentemente informais, constituídos por trabalhadores por conta própria, não têm empregados, apresentam grande participação de mulheres predominante negras ou pardas de baixa escolaridade, oriundas de segmentos sociais mais pobres da sociedade brasileira (Sebrae, 2023). Note-se ainda que é nesse grupo que ocorre com mais frequência o abandono ou a morte dos empreendimentos, trazendo para o trabalhador prejuízos emocionais e financeiros, por vezes a poupança de toda uma vida, por outras, a perda do FGTS, empréstimos que dificilmente poderão ser quitados etc.

Principalmente a partir das últimas décadas, a educação em geral e as escolas em particular, desde o ensino fundamental à universidade, demonstram estar cada vez mais impregnadas pela ideologia do mercado e redefinem seus projetos pedagógicos no sentido de contribuírem desde cedo para a formação de trabalhadores capazes de se ajustarem à flexibilidade requerida pelas tendências dominantes da acumulação capitalista. Atualmente, no país, a educação para o empreendedorismo é uma realidade em boa parte das instituições dos sistemas públicos e privados de ensino, aí incluídas as universidades; e também na educação profissional e em cursos extracurriculares oferecidos por entidades como o Sebrae, em parceria com essas instituições. Trata-se de disseminar o que vem sendo denominado de “pedagogia empreendedora” ou “pedagogia do sonho” (Dolabela, 2003, p. 73). Conforme o autor, o objetivo é estimular e preparar o aluno para desenvolver um sonho, um desejo de onde chegar, o que pretende ser, motivar o estudante a aprender o necessário para atingir esse objetivo. 

Não é de hoje que a área da saúde, sobretudo o setor privado, constitui amplo campo de possibilidades para a ação empreendedora. Clínicas e consultórios médicos, de fisioterapia, fonoaudiologia, apenas para citar alguns exemplos, podem constituir microempresas, cooperativas etc. e são considerados empreendimentos com potencial de serem formalizados através de várias figuras jurídicas que não cabe aqui especificar.

Pereira e Martins (2023, p. 7) identificaram numerosas possibilidades de ação empreendedora na área da enfermagem, como “consultas, administração de medicamento e tratamentos prescritos em clínicas de enfermagem; orientação para autoadministração de medicamentos; cuidado e controle de pacientes crônicos, gestante e curativos”, entre os muitos procedimentos regulamentados na Lei n0 7.498/1986. Essas e outras práticas permitem ao profissional da enfermagem criar empreendimentos como clínicas e consultórios de enfermagem, home care, serviços especializados como o cuidado com idosos, vacinação, transporte de pacientes, locação de equipamentos de reabilitação, comercialização de produtos hospitalares, entre muitas outras possibilidades (Pereira e Martins, 2023, p. 7)

Cabe assinalar que, contemporaneamente, sobretudo sob o impulso da recente aceleração tecnológica provocada pela pandemia da Covid-19, cresceu substancialmente o número das chamadas healthtechs ou empresas tecnológicas em saúde, também denominadas startups, plataformas que oferecem serviços médicos, prontuários eletrônicos, software para gestão de hospitais, análises biológicas etc. Essas empresas constituem importante nicho do mercado empreendedor no Brasil e na América Latina, com efeitos no setor público (Druck, 2007). Cabe, entretanto, ressaltar que as healtechs constituem empreendimentos que demandam considerável aporte financeiro, alto nível de escolaridade dos empreendedores, contam muitas vezes com o apoio de universidades, principalmente em seu início, condições que estão ao alcance de poucos trabalhadores da saúde.

Verbetes Relacionados: 

Direitos trabalhistas

Gerencialismo

Neoliberalismo

Precarização do trabalho

Reestruturação produtiva

Seguridade social

Sindicalismo

Trabalho

Trabalho informal

 

Referências Bibliográficas: 

BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

COLBARI, Antonia. A retórica do empreendedorismo e a formação para o trabalho na sociedade brasileira. In: SINAIS - Revista Eletrônica - Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição Especial de Lançamento, n.0 1, v.1, abr. 2007. Disponível em https://doi.org/10.25067/s.v1i01.2681. Acesso em: 18 de dez. 2023.

DOLABELA, Fernando. Pedagogia empreendedora, empreendedorismo na educação básica e universitária. [S. l.: s. n., 2018?]. Disponível em https://fernandodolabela.com.br/2018/07/17/ensino-convencional-x-educacao-empreendedora/.

DRUCK, Graça.  O  Estado  neoliberal  no  Brasil:  a  ideologia  do  empreendedorismo  e  o  fim  dos  servidores  públicos.  Contemporânea  –  Revista  de  Sociologia  da  UFSCar, v. 11, n. 3, set. - dez. 2021, pp. 821-844. Disponivel em https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/1067/478 Acesso em 18 dez. 2023.

RODRIGUES, Erich. “A vida é um caminho, não um destino. E você é o arquiteto do seu caminho”. Tribuna do Norte, 23 de nov. 2023. Disponível em https://tribunadonorte.com.br/especiais-tribuna-do-norte/hot-site/erich-rodrigues-a-vida-e-um-caminho-nao-um-destino-e-voce-e-o-arquiteto-do-seu-caminho/.  Acesso em 23 de nov. de 2023

PORTAL DA INDÚSTRIA. Empreendedorismo: o que é, significado, desafios e tipos. 2023a. Disponível em https://www.portaldaindustria.com.br/industria-de-a-z/empreendedorismo/ Acesso em: 10 maio 2023.

PORTAL DA INDÚSTRIA. Disponível em https://www.portaldaindustria.com.br/.Acesso em: 10 maio 2023b. 

PEREIRA, Priscila N.; MARTINS, Carla M. Ideologia em produções científicas sobre o empreendedorismo em enfermagem no Brasil. Saúde e sociedade, São Paulo, v. 32, n.1, 2023. Disponível em https://doi.org/10.1590/S0104-12902022220270pt. Acesso em 18 de dez. 2023.

SCHUMPETER, Joseph. A teoria do desenvolvimento econômico. Uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juros e o ciclo econômico. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1997.

SEBRAE. Brasil figura entre as cinco economias mais empreendedoras do mundo. Agência Sebrae de Notícias, Brasília, 10 jan. 2023. Economia e Política. Disponível em https://agenciasebrae.com.br/brasil-empreendedor/brasil-figura-entre-as-cinco-economias-mais-empreendedoras-do-mundo/ Acesso em: 10 maio 2023.

SEBRAE. Empreendedorismo informal no Brasil. Fevereiro 2023. Disponível em https://sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/empreendedorismo-informal-no-brasil,77089b44da716810VgnVCM1000001b00320aRCRD. Acesso em 10 maio 2023.

 

Como citar:

CHINELLI; Filippina. Empreendedorismo no Brasil [Verbete]. In: Glossário da pesquisa Desafios do Trabalho na Atenção Primária à Saúde na Perspectiva das(dos) Trabalhadoras(es). Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2023. Disponível em: ____________. Acesso em: ___________.